quarta-feira, 10 de abril de 2013

Dois pesos e duas medidas: Direito de nascer vs. direito de não procriar

Abri a minha caixa de Pandora e tirei de lá o meu objeto de estudo mais precioso: a liberdade da mulher decidir sobre o seu próprio corpo e, nesta medida, continuar ou não uma gravidez indesejada.

Como imaginam, são inúmeros os estudos acerca desta matéria, mas vou-me cingir unicamente ao aspeto jurídico (baseada em realidade empírica) que legitima a interrupção voluntária da gravidez em dadas situações.

A intenção é fazer com que todos que leiam este texto – principalmente as pessoas leigas no assunto – possam ter uma pequena noção dos motivos que levam a que abortar uma gestação em certas hipóteses não seja considerada uma conduta criminosa (pese embora, em alguns casos, possa ser moralmente reprovável).

Partindo da definição do próprio crime de aborto, que exige para a sua configuração a existência de vida humana intrauterina, a morte do feto deve resultar dos atos abortivos empregados. Ou seja, é preciso que haja uma gravidez em curso com a inequívoca existência de feto vivo ou ao menos com potencialidade de vida extrauterina.

De modo que o abortamento é punido em nome da frustração da potencial expectativa de surgimento de uma pessoa, consequentemente, reconhece-se ao feto um direito autónomo a nascer, completamente desvinculado do direito que tem a mãe de trazê-lo ao mundo.

No entanto, as coisas começam a complicar quando, juridicamente, não se reconhece o concepto como uma “pessoa” ou sujeito de direitos, condição que só adquire no momento do nascimento completo e com vida. Daí porque não goze plenamente do direito à vida enquanto direito fundamental.
 
Ou seja, o embrião não é pessoa, não tem personalidade jurídica no sentido do termo, razão pela qual não é titular de direitos fundamentais subjetivados, estes somente conferidos às pessoas. É titular de direitos constitucionalmente protegidos, mas não enquanto pessoa já nascida, de modo que não pode gozar da mesma proteção atribuída a esta.

Com efeito, sempre que haja conflito de interesses entre a mãe e o feto, seja entre bens ou entre direitos fundamentais, é assegurado à mulher a prevalência dos seus interesses. Neste sentido é o Acórdão nº 25/84, de 19 de Março de 1984, e o Acórdão nº 85/85, de 29 de Maio de 1985, ambos do Tribunal Constitucional (TC) português, que podem ser consultados no site do TC.

Essencialmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro não se distancia dessa ideia central ao declarar a constitucionalidade da interrupção voluntária da gravidez de feto portador de anencefalia. Em suma, o STF entende que falta ao anencéfalo a potencialidade de vida humana ou a expectativa do surgimento de uma pessoa, sendo a conduta, no caso, claramente destinada a resolver uma situação de dor e sofrimento da mulher. O Acórdão está disponível para consulta no site do STF.

Devo dizer, como mãe, que a interrupção voluntária da gravidez não é uma conduta aconselhável, nem defendida sem mais, mas como cientista tenho de reconhecer que este direito não pode ser negado para aquelas mulheres que, devidamente informadas, decidam pelo abortamento de uma gestação.

As preocupações em torno das causas sociais do abortamento não são recentes, estando na maioria das vezes ligadas à miséria, ao desemprego, à falta de auxílio estatal e encorajamento à maternidade consciente, etc. Na realidade, uma mulher decidida a abortar fá-lo-á em qualquer circunstância, muitas vezes sob condições precárias e sem estar devidamente acompanhada por um profissional de saúde. E outra vez, as mais prejudicadas são as mulheres socioeconomicamente menos favorecidas, já que não têm meios de recorrer às clínicas privadas para a realização do procedimento com o sigilo exigido pela ilegalidade da conduta e com um padrão de qualidade aceitável.

É preciso enfrentar o assunto sem preconceitos e reconhecer definitivamente a ineficácia da lei penal como meio repressor do delito. Aliás, o único efeito verdadeiramente constatado é o de tornar clandestino o abortamento.

Assim, acredito que a legalização da prática abortiva com a observância de determinadas condições é a medida que melhor atende os diversos interesses em questão, devendo integrar a política de saúde de todo Estado comprometido com os problemas sociais da população. Por outro lado, a exequibilidade da lei deve ser assegurada com vista à redução do número de abortamentos e como resultado de uma política de natalidade eficaz e bem planeada.

Para saber mais sobre a minha opinião, vejam o ensaio «Entre a Mulher e o Feto: A interrupção voluntária da gravidez no Brasil», publicado em 13-02-2013 na rubrica Pontos de Vista, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, disponível em formato eletrónico.
 

4 comentários:

  1. ## Quando leio seus "posts" principalmente da área jurídica tenho uma súbita vontade de continuar escrevendo... Como se estivéssemos num círculo de discussão dos aspectos em referência....

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    1. Às vezes o universo nos manda sinais, decifre-os, amiga!

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  2. Ideias coesas compondo um texto elucidativo, escrito primorosamente! Parabéns, Nubinha! Como cidadã defensora de uma política de natalidade eficaz e bem planejada, compartilho suas opiniões sobre esse tema tão polêmico e embrionário no que se refere a sua discussão mais profunda. Vejo que seu blog é um espaço democrático de trocas e aprendizados. Muito bom, amei! Beijos, Claudia Lessa.

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  3. Querida Claudinha, fico imensamente feliz com a tua perspetiva acerca do blog, principalmente sabendo da jornalista de mão-cheia que és. Muito obrigada, participa sempre e vamos lutar pelas causas que nos move.

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