quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Família



Trecho do livro "O Arroz de Palma", de Francisco Azevedo, para saborearmos nesse Natal.

Feliz Natal, com o melhor que temos!

"Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema - principalmente no Natal e no Ano-Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida - azeitona verde no palito - sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano - quem diria? - solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este, o mais gordo e generoso, farto, abundante. Aquele o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente. E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero ou do grau comparativo. Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e a cebola. Não se envergonhe se chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza. Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, essas especiarias - que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar - tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa. Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto, é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada. O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe "Família à Oswaldo Aranha", "Família à Rossini", "Família à Belle Meunière" ou "Família ao Molho Pardo" - em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é "À Moda da Casa". E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras, apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada - seriam assim um tipo de "Família Diet", que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir. Há famílias, por exemplo, que levam muito tempo para serem preparadas. Fica aquela receita cheia de recomendações de se fazer assim ou assado - uma chatice! Outras, ao contrário, se fazem de repente, de uma hora para outra, por atração física incontrolável - quase sempre de noite. Você acorda de manhã, feliz da vida, e quando vai ver já está com a família feita. Por isso é bom saber a hora certa de abaixar o fogo. Já vi famílias inteiras abortadas por causa de fogo alto. Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia-a-dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente, na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete."

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O português que me traiu

Fonte: Internet
Sou incorrigível. Esforço-me mas não aprendo e a verdade é que todos os dias sou traída. Traída pela língua. Depois... depois fico com essa cara de incompreendida que não passa por nada! 

Dizem, as boas ou más línguas, que a melancolia é lusitana. Se calhar tem razão! Mas de facto é a língua que faz um povo e eu cá estou, inserida. Completei uma década de português, de Portugal, tempo suficiente para aprender que:

  • açougue é talho; 
  • apostila é sebenta; 
  • bala é rebuçado; 
  • banheiro é casa de banho; 
  • calcinha é cueca; 
  • celular é telemóvel; 
  • conversível é descapotável; 
  • geladeira é frigorífico; 
  • grampeador é agrafador; 
  • injeção é pica; 
  • cafezinho é bica; 
  • ônibus é autocarro; 
  • meias são peúgas; 
  • pedestre é peão; 
  • ponto de ônibus é paragem; 
  • sanduíche é sandes; 
  • suco é sumo; 
  • trem é comboio;
  • vitrine é montra;
  • xícara é chávena...

Mas ao contrário, ainda escorrega-me os pronomes de tratamento no meu modo brasileiro de falar português, o meu português tupiniquim, que exalta a criatividade linguística e a brejeira identidade nacional de um povo refletida no seu idioma.

É óbvio que as regras gramaticais não revelam se sou muito ou pouco culta, nem se é ser simplista ou pejorativo deixar escapar um "querida", seguido da interjeição "olá", como forma de expressar um cumprimento positivo ou saudar uma pessoa apressadamente incluída num contexto, digamos, mais informal.

Era simpático, de minha parte. Todavia, sendo "querida", ipsis litteris, expressão para alguns quase ofensiva, desconcertante talvez, respeitarei o português. Da próxima haverei de corrigir-me e pôr os axiônimos nos devidos sujeitos.