Abri a minha caixa de Pandora e tirei de lá o meu
objeto de estudo mais precioso: a liberdade da mulher decidir sobre o seu
próprio corpo e, nesta medida, continuar ou não uma gravidez indesejada.
Como imaginam, são inúmeros os estudos acerca
desta matéria, mas vou-me cingir unicamente ao aspeto jurídico (baseada em realidade
empírica) que legitima a interrupção voluntária da gravidez em dadas situações.
A intenção é fazer com que todos que leiam este
texto – principalmente as pessoas leigas no assunto – possam ter uma pequena noção
dos motivos que levam a que abortar uma gestação em certas hipóteses não seja considerada
uma conduta criminosa (pese embora, em alguns casos, possa ser moralmente
reprovável).
Partindo da definição do próprio crime de aborto,
que exige para a sua configuração a existência de vida humana intrauterina,
a morte do feto deve resultar dos atos abortivos empregados. Ou seja, é
preciso que haja uma gravidez em curso com a inequívoca existência de feto vivo
ou ao menos com potencialidade de vida extrauterina.
De
modo que o abortamento é punido em nome da frustração da potencial expectativa
de surgimento de uma pessoa, consequentemente, reconhece-se ao feto um direito autónomo
a nascer, completamente desvinculado do direito que tem a mãe de trazê-lo ao
mundo.
No entanto, as coisas começam a complicar quando,
juridicamente, não se reconhece o concepto como uma “pessoa” ou sujeito de
direitos, condição que só adquire no momento do nascimento completo e com vida.
Daí porque não goze plenamente do direito à vida enquanto direito fundamental.
Ou seja, o
embrião não é pessoa, não tem personalidade jurídica no sentido do termo, razão
pela qual não é titular de direitos fundamentais subjetivados, estes somente
conferidos às pessoas. É titular de direitos constitucionalmente protegidos,
mas não enquanto pessoa já nascida, de modo que não pode gozar da mesma
proteção atribuída a esta.
Com
efeito, sempre que haja conflito de interesses entre a mãe e o feto, seja entre
bens ou entre direitos fundamentais, é assegurado à mulher a prevalência dos
seus interesses. Neste sentido é o Acórdão nº 25/84, de 19 de
Março de 1984, e o Acórdão nº 85/85, de 29 de Maio de 1985, ambos do Tribunal
Constitucional (TC) português, que podem ser consultados no site do TC.
Essencialmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro não se distancia
dessa ideia central ao declarar a constitucionalidade da interrupção voluntária
da gravidez de feto portador de anencefalia. Em suma, o STF entende que falta ao anencéfalo a
potencialidade de vida humana ou a expectativa do surgimento de uma pessoa, sendo
a conduta, no caso, claramente destinada a resolver uma situação de dor e
sofrimento da mulher. O Acórdão está disponível para consulta no site do STF.
Devo
dizer, como mãe, que a interrupção voluntária da gravidez não é uma conduta
aconselhável, nem defendida sem mais, mas como cientista tenho de reconhecer
que este direito não pode ser negado para aquelas mulheres que, devidamente informadas,
decidam pelo abortamento de uma gestação.
As preocupações
em torno das causas sociais do abortamento não são recentes, estando na maioria
das vezes ligadas à miséria, ao desemprego, à falta de auxílio estatal e
encorajamento à maternidade consciente, etc. Na realidade, uma mulher decidida
a abortar fá-lo-á em qualquer circunstância, muitas vezes sob condições
precárias e sem estar devidamente acompanhada por um profissional de saúde. E outra
vez, as mais prejudicadas são as mulheres socioeconomicamente menos favorecidas,
já que não têm meios de recorrer às clínicas privadas para a realização do
procedimento com o sigilo exigido pela ilegalidade da conduta e com um padrão
de qualidade aceitável.
É preciso enfrentar o assunto sem preconceitos e
reconhecer definitivamente a ineficácia da lei penal como meio repressor do
delito. Aliás, o único efeito verdadeiramente constatado é o de tornar
clandestino o abortamento.
Assim, acredito que a legalização da prática
abortiva com a observância de determinadas condições é a medida que melhor
atende os diversos interesses em questão, devendo integrar a política de saúde
de todo Estado comprometido com os problemas sociais da população. Por outro
lado, a exequibilidade da lei deve ser assegurada com vista à redução do número
de abortamentos e como resultado de uma política de natalidade eficaz e bem
planeada.
Para
saber mais sobre a minha opinião, vejam o ensaio «Entre a Mulher e o Feto:
A interrupção voluntária da gravidez no Brasil», publicado em 13-02-2013 na rubrica
Pontos de Vista, da Faculdade de
Direito da Universidade Nova de Lisboa, disponível em formato eletrónico.
## Quando leio seus "posts" principalmente da área jurídica tenho uma súbita vontade de continuar escrevendo... Como se estivéssemos num círculo de discussão dos aspectos em referência....
ResponderEliminarÀs vezes o universo nos manda sinais, decifre-os, amiga!
EliminarIdeias coesas compondo um texto elucidativo, escrito primorosamente! Parabéns, Nubinha! Como cidadã defensora de uma política de natalidade eficaz e bem planejada, compartilho suas opiniões sobre esse tema tão polêmico e embrionário no que se refere a sua discussão mais profunda. Vejo que seu blog é um espaço democrático de trocas e aprendizados. Muito bom, amei! Beijos, Claudia Lessa.
ResponderEliminarQuerida Claudinha, fico imensamente feliz com a tua perspetiva acerca do blog, principalmente sabendo da jornalista de mão-cheia que és. Muito obrigada, participa sempre e vamos lutar pelas causas que nos move.
ResponderEliminar