Ainda nas primeiras lições de Penal aprendi uma expressão que parece ter caído em desuso mas que adorávamos repetir, como se nos imprimisse um certo respeito diante do conhecimento específico que diferenciava-nos, os criminalistas ou criminologistas, dos outros aspirantes a qualquer coisa. Tratava-se da expressão "fronteiriços" ou "criminosos fronteiriços": indivíduos que vivem no limiar entre a doença mental e a normalidade e que cometem delitos com intenso grau de violência devido a distúrbios de personalidade, p. ex.: os psicopatas, obsessivos compulsivos, pessoas que sofrem de transtornos sexuais, etc.
De um modo geral, fronteiriços são pessoas que vivem na fronteira, no limite de qualquer coisa, que não se sentem enquadrados numa definição ou posição unilateral. Eu, a propósito, considero-me uma fronteiriça. Sou um ser difuso, um perfil social que transporta-me e liga-me a amigos e familiares enquanto há quase uma década recrio-me em outro país... como uma lula cujos tentáculos gigantes lança desordenadamente de modo a agarrar-se a qualquer ponto da superfície.
Quase diariamente atualizo-me. Vejo passar casamentos, batizados, aniversários, encontros em que deveria estar... vejo crescer as crianças e os adultos envelhecerem aos poucos... mato saudades, rio e por vezes regozijo-me de minha condição. Mas muitas vezes sinto-me esquecida. Não por culpa que possa ser atribuída, prefiro acreditar que a distância pode provocar o esquecimento. Faz parte desta condição.
Se perguntarem-me o que considero mais difícil, direi que é a escolha de um dos lados. Passado um tempo, acostumamo-nos e torna-se quase confortável viver na fronteira. E assim vamos adiando a decisão, porque se calhar já não nos adaptamos; porque entretanto vieram os filhos e as escolas; porque constituímos família, outros amigos, ocupações e a vida rolou, já não somos uma só pessoa. Contudo, falta a nossa identidade; falta a história que ficou para trás e que nos pertence; falta mais do que festejar, falta chorar junto com os nossos a nossa dor, a dor que somente compreende o núcleo que a sente.
Neste fim de semana, mais uma vez senti bem fundo o duro golpe de ser fronteiriça. Morreu uma tia. Estivemos juntas há pouco mais de um mês e não nos despedimos, estava fora de nossas expectativas. A minha família estava desolada e uniram-se em torno de um doloroso abraço. Eu, ao contrário, fechei a minha janela virtual - a mesma por onde soube a triste notícia - e daqui do lugar mais sombrio de minha fronteira, destrocei-me sozinha: chorei, lamentei e fiz o meu luto privado.
Hoje acordei e senti, já mais restaurada, que a vida iria seguir implacável para todos nós, de longe e de perto. Só que, no meu caso, com a agravante do medo ainda maior das más notícias, essa angústia cruel que persegue aqueles que, como eu, não estão propriamente em lado nenhum.