No passado dia 17 de Abril, o Estatuto do Nascituro (PL 478/2007) voltou a pauta da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos
Deputados, Brasil, para julgamento. Por apenas um voto não entrou em discussão
e caso seja aprovado seguirá para a Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania, a última desta Casa.
Muitas pessoas desconhecem os objetivos do Estatuto
do Nascituro, bem como as suas repercussões a nível dos direitos das mulheres brasileiras.
Por esta razão, entendi ser oportuno tecer algumas considerações a respeito de
assunto tão delicado, dando o meu contributo para o esclarecimento dos leitores
e, quiçá, a formação de uma opinião ponderada, seja ela qual for.
Para começar, é
importante lembrar que o Brasil é um país tradicionalmente muito religioso,
tendo a maior população católica do mundo, o que naturalmente repercute numa
legislação bastante restritiva em matéria dos direitos reprodutivos das
mulheres (decorrência do princípio da sacralidade da vida). Basta dizer, que quando
se discutia as questões da mulher na elaboração da Constituição brasileira de
1988, os grupos religiosos quiseram prever no Art. 5º “a inviolabilidade do
direito à vida desde a concepção”, sendo impedidos pelos grupos feministas, que
após uma luta árdua conseguiram afastar a matéria abortiva do texto
constitucional.
Não
obstante, depois de mais de duas décadas de vigência da Constituição, nota-se
claramente um retrocesso do Congresso Nacional em matérias ligadas aos direitos
das mulheres, como se constata com a PEC 164/2012, que visa novamente assegurar
a inviolabilidade do direito à vida desde a conceção. Segundo o Cfemea –
Centro Feminista de Estudos e Assessoria (ONG que acompanha os debates no Poder
Legislativo), a atual legislatura é a pior desde a Constituição de 1988.
Esta tendência
conservadora da legislatura atual é também marcada pela tentativa de aprovação
do Estatuto do Nascituro. Se for sancionado, o Estatuto do Nascituro
representará um entrave não só ao acesso eficaz das mulheres ao aborto nos
casos já permitidos (risco de vida para a mãe e gravidez decorrente de
violência sexual), como também poderá dificultar a revisão da matéria, de forma
a ampliar os seus direitos reprodutivos. Ademais, trará repercussões negativas
para as pesquisas com células-tronco embrionárias, opondo-se neste aspeto a
decisão do STF que recentemente as autorizou.
Isto porque o
Estatuto do Nascituro assegura a proteção integral do nascituro desde o momento
da conceção, incluindo nesse conceito “os seres humanos concebidos ‘in vitro’,
os produzidos através de clonagem ou por outro meio científica e eticamente
aceito” (Arts. 1º e 2º). Efetivamente, o Estatuto do Nascituro visa estabelecer
os direitos do nascituro, equiparando equivocadamente o estatuto jurídico e
moral do embrião humano com o da pessoa nascida.
Dentre outras
determinações, reza o Art. 4º do Estatuto que “(…) é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, ao desenvolvimento, à
alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à família, além de
colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”.
Com efeito,
quando o Estatuto preconiza os direitos do nascituro “com absoluta prioridade”,
invalida completamente o recurso ao aborto
terapêutico, cujo procedimento tem por escopo resolver o conflito existente
entre a vida da mãe e a do feto. Isto vale independentemente da probabilidade
de sobrevida do nascituro (Arts. 9º e 10º), contrariando, também neste aspeto,
a jurisprudência já assente relativamente ao abortamento de feto portador de
anencefalia.
Manifestamente,
inviabiliza também a prática do aborto
sentimental, na medida em que veda “ao Estado e aos particulares causar
qualquer dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de
seus genitores” (Art. 12).
Assim, ao
nascituro concebido em decorrência de crime contra a liberdade sexual da mulher
é assegurado direito prioritário à assistência pré-natal e pensão alimentícia
equivalente a um salário mínimo nacional até que complete 18 anos, paga pelo
Estado ou pelo genitor quando identificado. E, em contrapartida, o único
direito reconhecido à mulher é o acompanhamento psicológico, além de poder
encaminhar o menor para adoção (Arts. 12 e 13). É por isto que se apelida o Estatuto do Nascituro de "Bolsa-estupro".
Outra inovação
do Estatuto tem a ver com a parte penal: é criada a modalidade culposa do
aborto (Art. 23); o crime de anúncio de processo, substância ou objeto
destinado a provocar aborto (Art. 24); proíbe congelar, manipular ou utilizar
nascituro como material de experimentação (Art. 25); cria os crimes de ofensa à
honra do nascituro (Arts. 26 e 27); o crime de apologia do aborto ou de quem o
praticou, bem como o incitamento à sua prática (Art. 28); o crime de
induzimento de mulher grávida à prática do aborto (Art. 29) e, por fim,
enquadra o aborto entre os crimes hediondos.
Como se nota, ao
nascituro é conferido um extenso leque de direitos, na mesma proporção em que
se retira da mulher os direitos conquistados democraticamente, não somente os
concernentes a sua autonomia e liberdade individual, mas sobretudo a sua
própria saúde física e mental. Estes direitos fazem parte do elenco de direitos
fundamentais e são expressão do princípio da dignidade humana, corolário de
todos os demais. Por esta razão, dificilmente se poderá conferir legitimidade
constitucional ao Estatuto do Nascituro.
Sem comentários:
Enviar um comentário