Estava a tentar ouvir o silêncio, mas quando fechava os olhos, via uma casa cheia de vazio. Era a mesma casa de antes, embora agora parecesse estranha demais. Via tudo indo embora: a cama do casal, as roupas do roupeiro, o quarto dos miúdos, os livros, o pó, o cheiro... Só ficava o silêncio que, dizia ela, apertava-lhe o peito e sufocava as palavras que ainda ressoavam no ar. As palavras do silêncio: "Não ajudas"; "És desorganizada"; "Não transas"; "Sentes-te gorda, é por isso"; "Não pagas as contas"; "Não gostas das pessoas"; "Estas sempre de má cara"; "Vives para as crianças"; "Pareces uma dondoca"; "Não tens noção do dinheiro"; "Devias acordar mais cedo"; "Não tens espírito de sacrifício"; "Não sabes gerir"; "Não tens jeito..." Eram as palavras que não queriam se calar as que mais lhe doía, as que lhe roubava a esperança e lhe enchia de medo. Sabia o que tinha de fazer, não sabia como... passou-se demasiado tempo e já não sabia como ser outra pessoa que não aquela (essa) que agora julgava ser. Fizera-lhe acreditar nisso. Como seria ser feliz? Parecia tão simples, parecia uma pintura em tela, um retrato na parede onde todos estavam a sorrir. Alguém, outro dia, disse-lhe que ser feliz dava trabalho... mas parecia tudo tão perfeito! Quando foi que deixou de ser? Será que foi quando um deles sentiu a urgência da vida? Será que foi quando um deles, sobrecarregado dos dois, encolheu-se? Será que foi desde as primeiras contas; desde que se notou as desigualdades; desde que se calaram; desde que gritaram; desde que um continuou e o outro ficou a ver; desde que um ocupou o lugar de dois... Será que foi desde sempre?
Ela contava-me isso mas dizia que estava bem, eu percebi que era importante para ela e acreditei. Dizia que meditava e que fazia terapia, que logo faria uma viagem sozinha e que haveria de terminar tudo o que começou. Depois... depois que fechasse aquele negócio, seria tudo diferente, dizia. Dizia, ainda assim, que sentia-se em paz. Eu não. Eu não compreendia. Parecia-me silêncio a mais.
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