Conheci há pouco tempo um pouco da obra de Pedro Chagas Freitas e fiquei tão fascinada que inscrevi-me no seu curso on line de escrita criativa. Adoro a irreverência, o arrebatamento dos seus textos, muitas vezes de cortar a respiração. E prende-me o seu estilo, a forma como desmistifica a pontuação (acerca do Ilusionismo Linguístico de Chagas), como passeia pelo universo das letras. É fabuloso!
***
"amo-te tanto mas hoje tenho de levar o carro ao
mecânico, as rodas fazem um barulho estranho, não deve ser nada mas é melhor
prevenir, amanhã prometo que vamos ver que tal se come naquele restaurante novo
junto à rotunda, e depois levo-te ao cinema, ai não que não levo,
amo-te tanto mas hoje tenho de ver o treino do
miúdo, o treinador ligou e disse-me que temos craque, o nosso menino a jogar
como gente grande, vê lá tu, quando chegar com ele vê se tens prontinha aquela
comida que ele adora, o puto merece, ai não que não
merece,
amo-te tanto mas hoje tenho de ficar até tarde no
escritório, há aquele projecto do estrangeiro para fechar, está aqui tudo
perdido de nervos, não sei se aguento, daqui a pouco ligo-te para saber como
vai tudo, o miúdo e as coisas aí em casa, agora tenho de ir mostrar a esta
gente toda como se trabalha, ai não que não tenho,
amo-te tanto mas hoje tenho de me deitar cedo,
amanhã é aquela reunião importante de que te falei, se conseguir o cliente
vamos ser tão felizes, aquela casa, o carro novo, quem sabe?, só tenho de o
conseguir convencer, tenho tudo prontinho na minha cabeça e nada pode falhar,
vamos ser ricos, é o que é, ai não que não vamos,
amo-te tanto mas hoje não estás, cheguei à hora
combinada para te levar a jantar e tu não estás, o miúdo também não, deve estar
no treino, deixa-me cá ligar, ninguém atende, nem tu nem ele, provavelmente
deves estar a preparar alguma, sempre foste tão assim, cheia de surpresas,
daqui a nada entras pela porta e dizes que me amas, ai não que não dizes,
amo-te tanto mas hoje tenho de assinar este papel,
olho-te e peço-te perdão, prometo-te que não vai haver mais mecânicos nem
treinos nem clientes estrangeiros nem reuniões entre nós, garanto-te que te
quero acima de tudo, olho-te mais uma vez nos olhos e procuro acalmar o que te
dói, mas tu só dizes para eu assinar e eu assino, as mãos tremem e até já uma
lágrima caiu sobre elas, o nosso filho quando souber vai chorar como um menino
pequeno outra vez, o nosso craque, podias ficar pelo menos pelo nosso craque,
ou pelo menos por mim, para me manteres vivo, Deus me salve de não te ter
comigo, sou uma impossibilidade se não te tiver para gostar, ai não que não
sou,
amo-te tanto mas hoje não tenho nada para fazer, a
casa escura, um silêncio vazio e nada para fazer, apenas esperar que te
esqueças de mim e me voltes a amar, e eu amo-te tanto, ai não que não amo".
Pedro Chagas Freitas, in: "O Livro dos Loucos".
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