terça-feira, 18 de junho de 2013

A comovente história de Danann Tyler, uma criança transgénero norte-americana. E se fosse brasileira ou portuguesa?

Tomei conhecimento da matéria da Folha de São Paulo, de 16 de Junho de 2013, assinada por Luciana Coelho, e não consegui ficar indiferente à notícia. Conta a história de Danann Tyler, uma criança norte-americana de 10 anos (Orange County), que nasceu biológica e geneticamente menino, mas que desde os 2 se expressa e se identifica como menina. Trata-se de uma criança transgénero, uma situação que suscita ainda muitos esclarecimentos sobre as questões de género.
 
A vida da pequena Danann, que caminha para o feminino, nem sempre foi de cor-de-rosa! Apesar de afirmar a certeza de ser menina, durante a maior parte da sua vida esta convicção foi sentida de forma solitária, de modo que aos 4 anos Danann tentou mutilar o seu pénis com uma tesoura infantil e meses mais tarde tentou contra a sua própria vida. Este episódio foi o marco para que passasse a ser tratada em casa e na escola como a menina que diz ser, recebendo acompanhamento médico e psicológico desde os 6 anos.
 
Danann é paciente da Doutora Cindy Paxton, da Universidade da Califórnia, especializada em crianças e adolescentes transgénero. A Doutora Paxton faz questão de ressaltar a diferença entre meninos que se travestem ou que brincam com brinquedos de meninas - e que muitas vezes quando adultos se tornam gays - daqueles que, como Danann, se identificam de forma coerente como meninas. O mais natural é os pais não darem muita importância ao fato, acreditando que tudo não passa de uma fase, mas os casos de crianças transgénero há cerca de uma década começam a ser tratados com a devida importância.
 
Atualmente a incongruência de género, termo que substitui o criticado “transtorno de identidade de género”, não é mais vista como uma doença psiquiátrica. No entanto o diagnóstico muitas vezes é impreciso, não raramente sendo confundido com transtorno de deficit de atenção e hiperatividade, esquizofrenia ou bipolaridade. Foi o que aconteceu com Danann até receber o diagnóstico acertado.
 
Está decidido que Danann usará inibidores hormonais para conter o desenvolvimento das características sexuais secundárias – voz grossa, pelos, etc. – de modo que, por volta dos 15 ou 16 anos, possa optar entre a continuação da transição ou a manutenção do sexo com o qual nasceu. Depois disto, poderá receber hormônios femininos para desenvolver seios e outras características próprias até a eventual cirurgia de mudança ou de confirmação de sexo.
 
No caso dos EUA a legislação e os custos cirúrgicos variam de Estado para Estado, mas em geral estima-se em US$50mil, parcialmente cobertos por alguns seguros de saúde. Isto levou-me a pensar no assunto sob o aspeto legal e por curiosidade quis saber como seria a abordagem pelo direito brasileiro e português, mais perto de nossa realidade.
 
E foi com alívio que constatei que, no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) cobre os custos da cirurgia, que desde Abril deste ano passou a poder ser realizada a partir dos 18 anos, ao invés de 21. Antes, é requisito obrigatório a avaliação clínica e psicológica por equipa multidisciplinar durante no mínimo 2 anos, viabilizando o tratamento hormonal a partir dos 16 anos.
 
No entanto, o Brasil não tem uma legislação específica sobre o assunto, sendo o procedimento cirúrgico realizado na rede pública com base em interpretação jurisprudencial que invoca o amplo direito à saúde assegurado pela Constituição Federal, na Resolução CFM nº 1.955/2010, de 12 de Agosto, e na recente Portaria do Ministério da Saúde (MS) que reduziu a idade para a intervenção médica. Mas apenas São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia e Porto Alegre contam com serviços ambulatoriais especializados. O tratamento inclui a retirada de mamas, útero e ovários, além da terapia hormonal para o crescimento de clítoris, mas a neofaloplastia (cirurgia para construção do pénis) não é arcada pela rede pública, pois o Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda considera a técnica experimental.
 
Já Portugal conta com a Lei nº 7/2011, de 15 de Março, que assegura a todas as pessoas de nacionalidade portuguesa, maiores de idade (18 anos) e em pleno gozo das suas capacidades civis e mentais, o direito a alteração ou confirmação de sexo e nome próprio no registo civil, cujo procedimento é  bastante célere (o requerimento de alteração de nome é dirigido diretamente a uma Conservatória e dura em média 8 dias). Exige-se a apresentação de um relatório que comprove o diagnóstico de incongruência de género, elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro, e também da necessária autorização da Ordem dos Médicos, o que é bastante controverso.
 
Com a reforma do único cirurgião plástico que realizava estas operações em Portugal, João Décio Ferreira, do Hospital Santa Maria, e o seu desligamento do Sistema Nacional de Saúde (SNS) por lhe ter sido proposto um pagamento de €6/hora, somente em Setembro de 2011 as cirurgias de mudança de sexo foram retomadas no país, através do programa atualmente assegurado de forma exclusiva pelos Hospitais da Universidade de Coimbra. Na rede privada, a cirurgia genital custa de €15mil a €20mil.
 
No resto da Europa, tal como na Espanha, Alemanha, Suíça e Itália, há pelo menos mais de 20 anos se legisla sobre a transexualidade, na esteira da Diretiva da Comissão Europeia que recomenda aos Estados Membros o reconhecimento legal desta situação.
 
No mais, tanto no Brasil como em Portugal a intervenção cirúrgica de mudança de sexo não é considerada uma mutilação, ou seja, conduta criminosa, não só porque conta com o consentimento informado do paciente, como também em face do seu propósito terapêutico de adequar a genitália ao sexo psíquico. O Estado de São Paulo conta, ainda, com a Lei nº 10.948/2001, de 5 de Novembro, contra a discriminação homofóbica em estabelecimentos comerciais, e em Portugal, no início deste ano, foi aprovada na Assembleia da República uma revisão ao Código Penal para consagrar a discriminação em função da orientação sexual ou identidade de género da vítima como uma qualificadora do crime de homicídio.
 
Congratulo, portanto, com o reconhecimento legal, que certamente vem na sequência do reconhecimento da própria sociedade, de toda a forma de fazer valer o exercício pleno da cidadania. E claro está, em termos de orientação sexual, que quanto mais cedo for o exercício e o asseguramento do livre direcionamento individual, mais cedo ter-se-á pessoas humanas completas e realizadas, que é o que realmente importa. Como, no terreno prático, Brasil e Portugal tratam as suas crianças transgénero, o mero cunho informativo deste post não me permitiu aprofundar. Mas a certeza inabalável que tenho - e que sinto! - de que o corpo deve ser a morada de um espírito verdadeiramente feliz, não a sua clausura, me fez escrever sobre isto, pelo menos deixando nesses alfarrábios um registo que julgo da maior importância e que deve por todos nós ser reivindicado: o respeito pelas nossas crianças, sejam elas como forem!

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