Tomei
conhecimento da matéria da Folha de São Paulo, de 16 de Junho de 2013, assinada por
Luciana Coelho, e não consegui ficar indiferente à notícia. Conta a história de
Danann Tyler, uma criança norte-americana de 10 anos (Orange County), que
nasceu biológica e geneticamente menino, mas que desde os 2 se expressa e se
identifica como menina. Trata-se de uma criança transgénero, uma situação que
suscita ainda muitos esclarecimentos sobre as questões de género.
A
vida da pequena Danann, que caminha para o feminino, nem sempre foi de cor-de-rosa!
Apesar de afirmar a certeza de ser menina, durante a maior parte da sua vida
esta convicção foi sentida de forma solitária, de modo que aos 4 anos Danann
tentou mutilar o seu pénis com uma tesoura infantil e meses mais tarde tentou
contra a sua própria vida. Este episódio foi o marco para que passasse a ser
tratada em casa e na escola como a menina que diz ser, recebendo acompanhamento
médico e psicológico desde os 6 anos.
Danann
é paciente da Doutora Cindy Paxton, da Universidade da Califórnia, especializada
em crianças e adolescentes transgénero. A Doutora Paxton faz questão de ressaltar a diferença entre meninos que se travestem ou que brincam com
brinquedos de meninas - e que muitas vezes quando adultos se tornam gays - daqueles que, como
Danann, se identificam de forma coerente como meninas. O mais natural é os pais
não darem muita importância ao fato, acreditando que tudo não passa de uma
fase, mas os casos de crianças transgénero há cerca de uma década começam a ser
tratados com a devida importância.
Atualmente
a incongruência de género, termo que substitui o criticado “transtorno de
identidade de género”, não é mais vista como uma doença psiquiátrica. No
entanto o diagnóstico muitas vezes é impreciso, não raramente sendo confundido
com transtorno de deficit de atenção
e hiperatividade, esquizofrenia ou bipolaridade. Foi o que aconteceu com Danann
até receber o diagnóstico acertado.
Está
decidido que Danann usará inibidores hormonais para conter o desenvolvimento
das características sexuais secundárias – voz grossa, pelos, etc. – de modo que,
por volta dos 15 ou 16 anos, possa optar entre a continuação da transição ou a
manutenção do sexo com o qual nasceu. Depois disto, poderá receber hormônios femininos
para desenvolver seios e outras características próprias até a eventual
cirurgia de mudança ou de confirmação de sexo.
No
caso dos EUA a legislação e os custos cirúrgicos variam de Estado para Estado,
mas em geral estima-se em US$50mil, parcialmente cobertos por alguns seguros de
saúde. Isto levou-me a pensar no assunto sob o aspeto legal e por curiosidade quis saber como seria a abordagem pelo direito brasileiro e
português, mais perto de nossa realidade.
E
foi com alívio que constatei que, no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS)
cobre os custos da cirurgia, que desde Abril deste ano passou a poder ser
realizada a partir dos 18 anos, ao invés de 21. Antes, é requisito obrigatório
a avaliação clínica e psicológica por equipa multidisciplinar durante no mínimo
2 anos, viabilizando o tratamento hormonal a partir dos 16 anos.
No
entanto, o Brasil não tem uma legislação específica sobre o assunto, sendo o procedimento
cirúrgico realizado na rede pública com base em interpretação jurisprudencial que
invoca o amplo direito à saúde assegurado pela Constituição Federal, na Resolução CFM nº 1.955/2010, de 12 de Agosto, e na recente Portaria do
Ministério da Saúde (MS) que reduziu a idade para a intervenção médica. Mas apenas
São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia e Porto Alegre contam com serviços ambulatoriais
especializados. O tratamento inclui a retirada de mamas, útero e ovários, além
da terapia hormonal para o crescimento de clítoris, mas a neofaloplastia
(cirurgia para construção do pénis) não é arcada pela rede pública, pois o Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda considera a
técnica experimental.
Já
Portugal conta com a Lei nº 7/2011, de 15 de Março, que assegura a todas as
pessoas de nacionalidade portuguesa, maiores de idade (18 anos) e em pleno gozo
das suas capacidades civis e mentais, o direito a alteração ou confirmação de
sexo e nome próprio no registo civil, cujo procedimento é bastante célere (o requerimento de alteração de nome é dirigido diretamente a uma Conservatória e dura em média 8 dias). Exige-se a apresentação de um relatório
que comprove o diagnóstico de incongruência de género, elaborado por equipa
clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde
público ou privado, nacional ou estrangeiro, e também da necessária autorização
da Ordem dos Médicos, o que é bastante controverso.
Com
a reforma do único cirurgião plástico que realizava estas operações em
Portugal, João Décio Ferreira, do Hospital Santa Maria, e o seu desligamento do
Sistema Nacional de Saúde (SNS) por lhe ter sido proposto um pagamento de €6/hora,
somente em Setembro de 2011 as cirurgias de mudança de sexo foram retomadas no
país, através do programa atualmente assegurado de forma exclusiva pelos
Hospitais da Universidade de Coimbra. Na rede privada, a cirurgia genital custa
de €15mil a €20mil.
No
resto da Europa, tal como na Espanha, Alemanha, Suíça e Itália, há pelo menos
mais de 20 anos se legisla sobre a transexualidade, na esteira da Diretiva da
Comissão Europeia que recomenda aos Estados Membros o reconhecimento legal
desta situação.
No
mais, tanto no Brasil como em Portugal a intervenção cirúrgica de mudança de
sexo não é considerada uma mutilação, ou seja, conduta criminosa, não só porque
conta com o consentimento informado do paciente, como também em face do seu
propósito terapêutico de adequar a genitália ao sexo psíquico. O Estado de São
Paulo conta, ainda, com a Lei nº 10.948/2001, de 5 de Novembro, contra a
discriminação homofóbica em estabelecimentos comerciais, e em Portugal, no
início deste ano, foi aprovada na Assembleia da República uma revisão ao Código
Penal para consagrar a discriminação em função da orientação sexual ou identidade
de género da vítima como uma qualificadora do crime de homicídio.
Congratulo,
portanto, com o reconhecimento legal, que certamente vem na sequência do
reconhecimento da própria sociedade, de toda a forma de fazer valer o exercício
pleno da cidadania. E claro está, em termos de orientação sexual, que quanto
mais cedo for o exercício e o asseguramento do livre direcionamento individual,
mais cedo ter-se-á pessoas humanas completas e realizadas, que é o que realmente
importa. Como, no terreno prático, Brasil e Portugal tratam as suas crianças transgénero, o mero cunho informativo deste post não me permitiu aprofundar. Mas a certeza inabalável que tenho - e que sinto! - de que o corpo deve ser a morada de um espírito verdadeiramente feliz, não a
sua clausura, me fez escrever sobre isto, pelo menos deixando nesses alfarrábios um registo que julgo da maior importância e que deve por todos nós ser reivindicado: o respeito pelas nossas crianças, sejam elas como forem!
Sem comentários:
Enviar um comentário